A trajetória de Nilo Cairo, do nascimento até a morte, agora pode ser conhecida em detalhes no livro “Nilo Cairo – A Medicina e a Universidade do Paraná”. Lançada recentemente, a obra reconstitui, à luz de um referencial teórico-científico, todas as fases da vida do médico homeopata, engenheiro militar e professor, um dos fundadores e força motriz da criação da primeira universidade do país, hoje Universidade Federal do Paraná.

A autoria é do médico Ipojucan Calixto Fraiz, professor do Departamento de Saúde Coletiva da UFPR, e José Miguel Rasia, também docente em Sociologia na mesma instituição. Com base na sociologia do alemão Norbert Elias, que se utiliza da teoria das configurações sociais para explicar a relação entre o indivíduo e o contexto em que vive, eles desenvolveram um trabalho conjunto a partir da tese apresentada por Fraiz ao doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR, sob a orientação de Rasia.

Nilo Cairo da Silva nasceu em Paranaguá, no litoral do Paraná, em novembro de 1874, e foi possivelmente o homeopata mais famoso do Brasil, citado também como o primeiro da especialidade a clinicar em Curitiba. O “Guia de Medicina Homeopática”, de sua autoria, publicado em 1907, originalmente com o nome de “Pequeno guia homeopático para uso do povo”, tem edições lançadas desde então, a mais nova neste ano de 2020.

No entanto, como explica o professor Ipojucan Fraiz, isso é relegado a um plano secundário na história da própria universidade, como se o fato dele ser homeopata fosse um mero detalhe. “Na realidade, faz parte da vida de Nilo Cairo a formação militar, o que foi importante para o início da instituição, a sua formação como médico e a sua associação a duas correntes filosóficas, o vitalismo e o positivismo, que desembocavam na Homeopatia. Portanto, não era apenas um detalhe”, diz. 

Ele conta que uma documentação que encontrou há cerca de 20 anos mostrava que, em 1914, quando da criação do curso de medicina da antiga Universidade do Paraná, constavam do programa duas disciplinas de Homeopatia, que seriam ministradas por Nilo Cairo. Tais matérias, porém, jamais foram ofertadas da forma como estavam propostas, no quinto ano do curso. Caíram do currículo antes disso. E ele ficou, então, com as cadeiras de Fisiologia e Patologia. “Qual era esse momento político, histórico, social, inclusive da medicina, que fizesse um homeopata lutar pela formação de uma universidade e que levasse a uma derrota da Homeopatia dentro da instituição? Deveria existir explicação para esse fato”, afirma.

Outra questão, segundo o professor, é que, apesar de alguns importantes e excelentes trabalhos de outros autores, como Renata Sigolo (historiadora que trabalhou o pensamento homeopático do início do século XX) e Érica Cintra (que escreveu sobre a história da criação da faculdade de medicina da Universidade do Paraná), havia, na historiografia paranaense, a necessidade de se debruçar um pouco mais sobre a figura de Nilo Cairo, do nascimento à morte, todo o seu material bibliográfico, reconstruindo sua trajetória e o papel que desempenhou nas configurações sociais das quais fez parte. “Essa foi a nossa intenção”, informa.

Ele destaca que não é possível pensar a trajetória de um indivíduo sem pensar o contexto social em que ela se dá. “Aí está a originalidade do trabalho, pois é nesse contexto que são encontrados os elementos que explicam, justificam e permitem a compreensão dessa trajetória individual. Nesse sentido fui muito auxiliado pelo meu orientador, professor José Miguel Rasia, coautor do livro, na medida em que, mesmo com a minha tese de doutorado pronta, entendemos que precisaríamos acrescentar alguns textos, retirar outros e fazer uma interpretação mais amadurecida desse processo”, acrescenta.

Característica marcante

Nilo Cairo era uma pessoa polêmica, mas tinha uma característica que merecia ser salientada e foi, inclusive, citada por um de seus alunos quando de um discurso logo após sua morte: ele era portador de polimatia, ou seja, tinha interesse em múltiplas áreas do conhecimento.

O polímata, em geral, costuma gerar contribuições à sociedade em diversos segmentos e, neste contexto, uma das primeiras iniciativas no trabalho, segundo o Dr. Ipojucan Fraiz, foi periodizar a produção bibliográfica de Nilo Cairo. “É uma figura muito interessante de se reconstruir a trajetória por estar em vários lugares e setores do conhecimento, sempre produzindo muito”, diz, informando que ele tem três fases. A primeira, na qual produz livros de Homeopatia, um deles, como já citado, editado até os dias de hoje; a segunda, em que escreve obras para seus alunos, a exemplo de livros de Fisiologia e Patologia, este usado fora do Brasil, referência para diversas gerações de médicos, e a terceira, com livros de agricultura, desde a cultura do fumo até guias práticos para o criador de animais domésticos ou para o pequeno lavrador, medicina veterinária homeopática e cultura de cana-de-açúcar, entre outros, que foram publicados quando mudou-se para um sítio em Mogi das Cruzes, no estado de São Paulo,  e tornou-se lavrador. Depois volta para a universidade.

Caminho trilhado

O livro trabalha o período em que Nilo Cairo está no Rio de Janeiro, se forma como engenheiro militar e médico, se filia ao vitalismo e positivismo e é extremamente atuante no Instituto Hahnemanniano, “no que nós chamamos de configuração médico- homeopática”, explica o professor.

Em Curitiba, ele inicia com o trabalho de Homeopatia, mas logo envolve-se também com a criação a Universidade do Paraná, construindo uma configuração médico-intelectual, muito voltada para uma concepção positivista de universidade e para a formação de quadros para um estado que já vinha encontrando a sua emancipação econômica e precisava se emancipar intelectualmente.

Fraiz lembra a importância do médico para a história da universidade, que reivindica a condição de primeira universidade do Brasil. “Realmente, no prédio histórico, cuja construção foi iniciada em agosto de 1913 e a primeira etapa concluída em 1916, estava escrito Universidade do Paraná, expressão que atravessou a história até que houvesse uma mudança de fachada. As publicações durante esse período também traziam o nome, mas, de fato, não se tornou universidade porque a legislação que autorizou a se criar essas instituições no Brasil, de 1911, foi modificada em 1915 e ela não foi reconhecida pelo governo federal, obrigando-se a se dividir em faculdades. Esse é outro lado interessante da história”, comenta.

É, portanto, relevante, ressalta, verificar a luta de todas as pessoas que insistiram na ideia de que aqui cabia uma universidade. “Pessoalmente, acredito que, sem Nilo Cairo ou o grupo que tenha liderado, é possível que o projeto naquele momento não tivesse sucesso. É, ao lado de Victor do Amaral, que também era médico, o mais importante fundador da atual UFPR e seguramente o mais ativo, o que coloca mais força, a força que impulsiona”, pontua. Entretanto, acrescenta, é muito inconstante, polêmico e em alguns períodos se retira, desiste e depois retorna. Então, coube a Victor do Amaral e seu grupo segurarem esse processo, ou seja, Nilo Cairo é a força motriz e Victor do Amaral, a força mantenedora da criação da universidade, tendo sido o primeiro reitor quando esta foi efetivamente reconhecida, em 1946.

Legado aos mais jovens

Nilo Cairo faz parte de uma geração que lutou por uma universidade no Paraná numa época em que Curitiba tinha apenas 60 mil habitantes. “E isso não foi fácil. Ele morreu em 1928, Victor do Amaral continuou e ambos, com as demais pessoas que compõem essa configuração que chamamos de médico-intelectual do estado, foram os responsáveis por buscar, para além da autonomia e independência econômica, uma emancipação intelectual”, salienta o professor.

Para ele, cabe aos mais jovens olhar para esse projeto, toda a área educacional e, em particular, a área médica em Curitiba, e lutar pela manutenção da universidade, da educação e da saúde, dando continuidade à luta de uma geração. “Ao ler o livro, o jovem vai perceber como esse personagem histórico enfrentava as dificuldades que tinha, muitas vezes com altos e baixos, mas sempre persistindo nas suas ideias e não abrindo mão de seus princípios. Sua determinação é uma das causas da fundação da atual UFPR”, conclui. Um legado que transcende a medicina.
 
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